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Se Houver Amanhã - Capítulo 6

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Mensagem por Humberto Lopes Sex Out 05, 2012 6:13 am

6


Havia 60 mulheres no Bloco C, quatro em cada cela. Rostos espiavam
de trás das barras, enquanto Tracy era conduzida pelo corredor comprido e
malcheiroso. As expressões variavam da indiferença ao desejo e ao ódio.
Tracy tinha a sensação de que andava por baixo d'água, em alguma terra
estranha e desconhecida, uma forasteira num sonho que se desenrolava
lentamente. A chamada ao gabinete do diretor fora a sua última tenue
esperança. Agora, nada mais restava. Nada além da perspectiva atordoante
de ficar encarcerada naquele purgatório pelos próximos 15 anos. A guarda
abriu a porta de uma cela.
─ Entre!
Tracy piscou, olhou ao redor. Havia três mulheres na cela,
observando-a em silêncio.
─ Vamos logo ─ insistiu a guarda.
Tracy hesitou por mais um instante, depois entrou na cela. Ouviu a
porta bater nas suas costas.
Estava em casa.
Na cela apertada mal cabia os quatro catres, uma mesinha com um
espelho quebrado por cima, quatro armários pequenos, um vaso sem
tampa no canto. As companheiras de cela fitavam-na fixamente. A mulher
porto-riquenha rompeu o silêncio:
─ Parece que temos uma nova colega de cela.
Sua voz era profunda e gutural. Seria bonita se não fosse por uma
cicatriz lívida de faca, que se estendia da têmpora à garganta. Parecia não
ter mais que 14 anos, até que se fitava seus olhos. Uma mexicana
atarracada, de meia-idade, disse:
─ Que surte verte! Prazer em vê-la. Por que a mandaram para cá,
querida?
Tracy estava paralisada demais para responder.
A terceira mulher era preta. Tinha mais de 1,80 metros de altura,
olhos estreitos e vigilantes, um rosto frio e duro, mais parecendo uma
máscara. A cabeça era rapada e o crânio tinha um brilho preto-azulado na
débil claridade.
─ Seu catre é ali no canto.
Tracy aproximou-se do catre. O colchão era imundo, manchado com
os excrementos que só Deus sabia de quantas ocupantes anteriores. Ela
não foi capaz de tocá-lo. E, involuntariamente, manifestou sua repulsa:
─ Eu... eu não posso dormir neste colchão...
A gorda mexicana sorriu.
─ Nem precisa, meu bem. Hay tiempo. Pode dormir no meu.
Tracy percebeu subitamente as tendências ocultas na cela,
atingindo-a como uma força física. As três mulheres observavam-na,
atentamente, fazendo-a sentir-se nua. Carne fresca. Ela sentiu-se
subitamente aterrorizada. Estou enganada, pensou Tracy. Oh, por favor,
permita que eu esteja enganada. Ela recuperou a voz:
─ Quem... com quem eu posso falar para conseguir um colchão
limpo?
─ Com Deus ─ grunhiu a preta. ─ Mas ele não tem aparecido por
aqui ultimamente.
Tracy virou-se para olhar novamente o colchão. Diversas baratas
pretas e grandes rastejavam por cima. Não posso ficar neste lugar, pensou
Tracy. Acabarei louca. Como se lesse os seus pensamentos, a preta
comentou nesse momento:
─ Siga com a correnteza, meu bem.
O melhor conselho que posso dar é o de tentar fazer com que tudo lhe
seja mais fácil aqui... A voz do diretor soava nitidamente nos ouvidos de
Tracy. A preta continuou a falar:
─ Sou Ernestine Littlechap. ─ Ela acenou com a cabeça para a
mulher da cicatriz. ─ Aquela é Lola. É de Porto Rico. E a gorda aqui é
Paulita, do México. Quem é você?
─ Eu... eu sou Tracy Whitney.
Ela quase dissera "Eu era Tracy Whitney". Tinha a sensação de
pesadelo de estar perdendo a identidade. Um espasmo de náusea
percorreu-lhe o corpo e segurou-se na beira do catre para se firmar.
─ De onde você vem, meu bem? ─ indagou a gorda.
─ Desculpe, mas... mas não estou com vontade de conversar.
Tracy sentia-se subitamente fraca demais para ficar de pé. Arriou na
beira do catre imundo, enxugou as gotas de suor frio no rosto com a saia.
Meu filho, pensou ela. Eu deveria ter falado com o diretor que vou ter um
filho. Ele me transferirá para uma cela limpa. Talvez até me deixem ficar
numa cela sozinha.
Ela ouviu passos se aproximando pelo corredor. Uma guarda
passava pela cela. Tracy adiantou-se rapidamente até à porta.
─ Com licença, mas preciso falar com o diretor. Eu estou...
─ Mandarei chamá-lo imediatamente ─ disse a guarda, virando a
cabeça para trás, enquanto continuava a seguir adiante.
─ Você não compreende. Eu estou...
Mas a guarda já estava longe.
Tracy comprimiu o punho contra a boca, com toda a força, para não
chorar.
─ Está doente ou algo parecido, meu bem? ─ perguntou a portoriquenha.
Tracy sacudiu a cabeça, incapaz de falar. Voltou para o catre,
contemplou-o por um momento, depois se deitou, lentamente. Era um ato
de desesperança, um ato de rendição. Ela fechou os olhos.
O décimo aniversário fora o mais emocionante de sua vida. Vamos
jantar no Antoine's, anunciou o pai.
Antoine's! Era um nome que evocava outro mundo, um mundo de
beleza, encanto e riqueza. Tracy sabia que o pai não tinha muito dinheiro:
Poderemos sair em férias no próximo ano, era um refrão constante na casa.
E agora eles iam jantar no Antoine's! A mãe de Tracy vestiu-a com o casaco
verde novo.
É maravilhoso olhar para vocês duas, o pai se gabou. Estou com as
duas mais lindas mulheres de Nova Orleans. Todos ficarão com inveja de
mim.
O Antoine's era tudo o que Tracy sonhara que seria e ainda mais.
Muito mais. Era um palácio encantado, elegante e decorado com bom
gosto, a toalha de mesa branca, pratos com monograma, em prateado e
dourado. É um autêntico palácio, pensou Tracy. Aposto que reis e rainhas
vêm aqui. Ela estava excitada demais para comer, muito absorvida a
contemplar todos os homens e mulheres tão bem vestidos. Quando eu
crescer, Tracy prometeu o mesmo: virei ao Antoine's todas as noites e trarei
papai e mamãe comigo.
Você não está comendo, Tracy, disse a mãe.
E, para agradá-la, Tracy forçou-se a comer um pouco. Havia um bolo
para ela, com dez velas, os maîtres cantaram os Parabéns Pra Você, os
outros fregueses se viraram e aplaudiram, Tracy sentiu-se como uma
princesa. Podia ouvir lá fora o barulho de um bonde passando.
A campainha do bonde era alta e insistente.
─ Hora do jantar ─ anunciou Ernestine Littlechap.
Tracy abriu os olhos. Portas de celas se abriam estrepitosamente por
todo o bloco. Tracy permaneceu deitada no catre, tentando
desesperadamente se apegar ao passado.
─ Ei, hora do grude! ─ gritou a jovem porto-riquenha.
A simples idéia de comida deixava-a enjoada.
─ Não estou com fome.
Paulita, a gorda mexicana, falou:
─ Es Ilano. É simples. Não querem saber se você está ou não com
fome. Todo mundo tem de ir para o refeitório.
As presas estavam entrando em fila no corredor lá fora.
─ É melhor você ir ou cairão em cima ─ advertiu Ernestine,
Não posso me mexer, pensou Tracy. Ficarei aqui.
As companheiras de cela saíram e entraram na fila dupla. Uma
guarda baixa e atarracada, de cabelos oxigenados, viu Tracy deitada no
catre e gritou:
─ Você! Não ouviu a campainha? Saia logo daí!
Tracy respondeu:
─ Obrigada, mas não estou com fome. Gostaria que me dispensasse.
Os olhos da guarda se arregalaram em incredulidade. Ela entrou
furiosa na cela e se aproximou do catre de Tracy.
─ Que merda você pensa que é? Está esperando pelo serviço de
quarto? Entre logo na porra da fila. Eu poderia inclui-la no relatório por
causa disso. Se acontecer novamente, você vai se dar mal. Entendido?
Tracy não entendia. Não era capaz de entender coisa alguma do que
estava lhe acontecendo. Ela deixou o catre quase se arrastando e foi para a
fila. Ficou parada ao lado da preta.
─ Por que eu...
─ Cale a boca! ─ Ernestine Littlechap resmungou pelo canto da boca.
─ Não fale na fila.
As mulheres foram levadas por um corredor estreito e sem qualquer
ventilação, passando por duas portas gradeadas e entrando num enorme
refeitório, cheio de mesas grandes de madeira e muitas cadeiras. Havia um
balcão de serviço comprido, com compartimentos fumegantes, pelo qual as
presas passavam para pegar a comida. O cardápio do dia consistia de um
ensopado de atum aguado, vagens murchas, um creme pálido e a opção
entre um café fraco ou um suco de fruta artificial.
Conchas da comida de aspecto repulsivo eram despejadas nos pratos
de metal das presas, enquanto elas avançavam pela fila. As reclusas que
serviam por trás do balcão gritavam incessantemente:
─ Todas andando na fila... A próxima... Mantenham a fila em
movimento... A próxima...
Depois que foi servida, Tracy ficou parada por um momento, indecisa,
sem saber para onde ir. Ela olhou ao redor, à procura de Ernestine
Littlechap, mas a preta desaparecera.
Tracy encaminhou-se para o lugar em que estava sentada Paulita, a
gorda mexicana. Havia 20 mulheres à mesa, devorando vorazmente a
comida. Tracy olhou o que havia em seu prato, depois empurrou-o para o
lado, enquanto a bílis subia e aflorava em sua garganta. Paulita se inclinou
e pegou o prato de Tracy.
─ Se não vai comer, então eu fico com isto.
Lola disse:
─ Ei, é melhor você comer ou não durará muito aqui.
Eu não quero durar, pensou Tracy, desesperada. Quero morrer. Como
essas mulheres suportam viver assim? Há quanto tempo estarão aqui?
Meses? Anos? Ela pensou na cela fétida, no colchão imundo, sentiu
vontade de gritar. Comprimiu as mandíbulas com tanta força que nenhum
som podia escapar. A mexicana estava dizendo:
─ Se a pegarem sem comer, vão mandá-la para a geladeira. ─ Ela viu
a expressão de perplexidade no rosto de Tracy e explicou: ─ O buraco ... a
solitária. Você não gostaria.
Lola fez uma pausa, inclinando-se para a frente, antes de
acrescentar:
─ É a sua primeira vez aqui, hem? Pois vou lhe dar um aviso,
querida. Ernestine Littlechap, manda neste lugar. Seja boazinha com ela e
estará feita.
Trinta minutos depois que as mulheres entraram no refeitório, soou
uma campainha alta e todas se levantaram. Paulita arrebatou uma vagem
solitária de um prato a seu lado. Tracy juntou-se a ela na fila dupla e as
mulheres começaram a marchar de volta Às celas. O jantar terminara.
Eram quatro horas da tarde... cinco longas horas suportar antes que as
luzes se apagassem.
Quando Tracy voltou à cela, Ernestine Littlechap já estava lá. Tracy
se perguntou, sem qualquer curiosidade, onde ela estivera durante o
jantar. Ela olhou para o vaso no canto. Precisava desesperadamente usá-lo,
mas não podia fazê-lo na frente das outras. Esperaria até que as luzes se
apagassem. Sentou na beira do catre.
Ernestine Littlechap disse:
─ Soube que você não comeu nada do seu jantar. Isso é uma
estupidez.
Como ela poderia ter descoberto? E por que se Importaria?
─ Como posso falar com o diretor?
─ Apresente um pedido por escrito. As guardas usam para limpar a
bunda. Acham que qualquer mulher que quer falar com o diretor é uma
encrenqueira. ─ Ernestine aproximou-se de Tracy. ─ Há uma porção de
coisas que podem criar problemas para você aqui. O que precisa é de uma
amiga que possa manter você fora de encrencas.
Ela sorriu, mostrando um dente, da frente de ouro, antes de
acrescentar, suavemente:
─ Alguém que conheça os caminhos do jardim zoológico.
Tracy levantou os olhos para o rosto sorridente da preta. Parecia
estar flutuando em algum lugar perto do teto.
Era a coisa mais alta que ela já vira.
Isto é uma girafa, disse o pai.
Estavam no jardim zoológico, no Audubon Park. Tracy adorava o
parque. Sempre iam lá aos domingos, a fim de escutar os concertos da
banda. Depois, a mãe e o pai levavam-na ao aquário ou ao zoológico,
Circulavam devagar, contemplando os animais em suas jaulas.
Eles não detestam ficar trancados, papai?
O pai riu. Não, Tracy. Eles têm uma vida maravilhosa. São bem
cuidados e alimentados, seus inimigos não podem pegá-los.
Os bichos pareciam infelizes a Tracy. Ela sentiu vontade de abrir as
jaulas e deixá-los escapar. Jamais vou querer ficar trancafiada assim,
pensou. A campainha de aviso soou por toda a prisão Às 8 e 45 da noite.
As companheiras de cela de Tracy começaram a se despir. Tracy não se
mexeu. Lola disse:
─ Você tem quinze minutos para se aprontar para dormir.
As mulheres puseram as camisolas. A guarda loura oxigenada passou
pela cela. Parou ao ver Tracy estendida no catre.
─ Dispa-se. ─ Ela olhou para Ernestine e perguntou: ─ Não disse a
ela?
─ Claro. Já falamos com ela.
A guarda tornou a se virar para Tracy, advertindo:
─ Temos um jeito todo especial de lidar com as encrenqueiras. Faça
o que lhe for mandado ou vai se dar mal.
A guarda afastou-se pelo corredor. Paulita avisou.
─ É melhor fazer o que ela diz, meu bem. A velha Calcinha de Ferro é
uma sacana muito escrota.
Lentamente, Tracy levantou-se e começou a tirar as roupas,
mantendo-se de costas para as outras. Tirou todas as roupas à exceção das
calcinhas e vestiu a camisola áspera pela cabeça. Sentia os olhos das
outras a observarem-na.
─ Você tem um corpo muito bonito ─ comentou Paulita.
─ Isso mesmo, muito bonito ─ murmurou Lola.
Tracy sentiu um calafrio percorrer-lhe. Ernestine aproximou─ se.
─ Somos suas amigas. Cuidaremos direitinho de você.
Sua voz estava rouca de excitamento. Tracy virou-se bruscamente.
─ Deixem-me em paz! Todas vocês. Eu... eu não sou desse tipo.
A preta soltou uma risada.
─ Você será qualquer coisa que a gente quiser, meu bem.
─ Hay tiempo. Há bastante tempo.
As luzes se apagaram.
A escuridão era inimiga de Tracy. Ela sentou na beira do catre, o
corpo tenso. Podia sentir as outras esperando para agarrá-la. Ou era sua
imaginação? Estava tão nervosa que tudo lhe parecia uma ameaça: Elas
haviam-na ameaçado? Não realmente. Provavelmente tentavam apenas ser
amistosas e ela interpretara implicações sinistras em tudo o que diziam.
Ouvira falar de atividade homossexual nas prisões, mas isso tinha de ser a
exceção e não a regra. Uma prisão não permitiria esse tipo de
comportamento.
Mesmo assim, persistia uma dúvida inquietante. Ela decidiu que
passaria a noite inteira acordada. Se uma delas fizesse qualquer
movimento, ela gritaria por socorro. Era responsabilidade das guardas
providenciar para que nada acontecesse Às reclusas. Tracy garantiu a si
mesma que não havia motivo para se preocupar. Precisaria apenas se
manter alerta.
Tracy continuou sentada na beira do catre, no escuro, atenta a cada
som. Uma a uma, ouviu as três mulheres irem ao vaso, usá-lo, voltar a
seus catres. Quando não conseguia mais aguentar, Tracy também foi ao
vaso. Tentou a descarga, mas não funcionava. O fedor era quase
insuportável. Ela voltou apressadamente ao catre e tornou a sentar-se na
beira. Estará clareando em breve, pensou ela. E pela manhã pedirei para
falar com o diretor. Contarei a ele que espero um filho. Ele me transferirá
para outra cela.
O corpo de Tracy estava tenso, cheio de cãibras. Estendeu-se no
catre e segundos depois sentiu uma coisa rastejar por seu pescoço.
Sufocou um grito. Tenho de ficar acordada até de manhã. Tudo estará bem
pela manhã, pensou Tracy. Um minuto de cada vez.
Ás três horas da madrugada ela não pôde mais manter os olhos
abertos. E mergulhou no sono.
Foi despertada com uma mão a lhe tapar a boca e outras duas lhe
apertando os seios. Tentou sentar e gritar, sentiu que lhe arrancavam a
camisola e a calcinha. Mãos se insinuaram entre suas coxas abrindo-lhe as
pernas. Tracy lutou selvagemente, fazendo o maior esforço para se
levantar.
─ Fique calma e não sairá machucada ─ sussurrou uma voz na
escuridão.
Tracy golpeou com os pés na direção da voz. Acertou em carne
sólida.
─ Carajo! ─ balbuciou a voz. ── Vamos dar uma lição na sacana.
Ponham ela no chão.
Um punho duro acertou o rosto de Tracy, outro atingiu-a na barriga.
Alguém estava por cima dela, imobilizando-a, sufocando-a, enquanto mãos
obscenas a violavam.
Tracy desenvencilhou-se por um instante, mas uma das mulheres
tornou a agarrá-la, bateu com a sua cabeça contra as grades. Ela sentiu o
sangue esguichar de seu nariz. Foi derrubada outra vez no chão de
concreto, imobilizaram suas mãos e pernas. Tracy lutou como uma louca,
mas não era uma adversária para as três. Sentiu mãos frias e línguas
quentes acariciando seu corpo. Suas pernas estavam abertas e um objeto
duro e frio foi empurrado para dentro dela. Debateu-se impotente, tentando
com desespero gritar. Um braço passou diante de sua boca e Tracy cravoulhe
os dentes, mordendo com toda a sua força. Houve um grito abafado:
─ Sua puta!
Punhos lhe socaram o rosto... Ela mergulhou no pavor, cada vez
mais fundo, até que finalmente não sentia mais nada.
Foi o clangor metálico da campainha que a despertou. Estava deitada
no chão frio de cimento da cela, nua. As três companheiras de cela se
achavam em seus catres. No corredor, Calcinha de Ferro gritava:
─ Hora de levantar!
Ao passar pela cela, a guarda viu Tracy estendida no chão, no meio
de uma pequena poça de sangue, o rosto todo machucado, um olho
fechado, de tão inchado.
─ Que diabo está acontecendo por aqui?
Ela destrancou a porta e entrou na cela. Ernestine Littlechap
sugeriu:
─ Ela deve ter caído de seu catre.
A guarda aproximou-se de Tracy e cutucou-a com o pé.
─ Levante-se!
Tracy ouviu a voz de uma longa distância. Isso mesmo, pensou ela,
tenho de me levantar. Tenho de sair daqui. Mas ela foi incapaz de se mexer.
O corpo vibrava de dor.
A guarda agarrou os cotovelos de Tracy e puxou-a para uma posição
sentada. Tracy quase desmaiou da agonia.
─ O que aconteceu?
Através de um olho, Tracy divisou os contornos meio indefinidos de
suas companheiras de cela, esperando silenciosamente por sua resposta.
─ Eu... eu... ─ Tracy tentou falar, mas as palavras não saíam. Ela
tentou de novo e algum instinto atávico, profundamente arraigado, levou─
a a balbuciar: ─ Caí do meu catre...
A guarda disse rispidamente:
─ Detesto as espertinhas. Vamos metê-la na geladeira até você
aprender algum respeito.
Era uma forma de esquecimento, um retorno ao útero. Ela estava
sozinha no escuro. Não havia móveis na sala de porão apertada, apenas
um colchão fino e velho, sobre o chão frio de cimento.
Um buraco fétido no chão servia como vaso. Tracy ficou deitada no
escuro, cantarolando para si mesma cantigas folclóricas que o pai lhe
ensinara há muitos e muitos anos. Não tinha noção de quão perto se
encontrava da beira da insanidade.
Não sabia direito onde se achava, mas isso não tinha importância.
Somente o sofrimento de seu corpo viciado importava. Devo ter caído e me
machucado, mas mamãe cuidará disso. Ela gritou em voz trémula.
─ Mamãe...
Como não houvesse resposta, tornou a resvalar para o sono. Dormiu
por 48 horas e a agonia finalmente desvaneceu para a dor, a dor foi
diminuindo. Tracy abriu os olhos. Estava cercada pelo nada. Era tão
escuro que não podia sequer divisar os contornos da cela. Recordações
afloraram. Haviam-na levado ao médico. Podia ouvir a voz dele:
─ ... uma costela quebrada e um pulso fraturado. Faremos uma
atadura... Os cortes e equimoses estão bem ruins, mas vão sarar. Ela
perdeu o filho...
Tracy balbuciou:
─ Oh, meu filho... assassinaram meu filho...
E ela chorou. Chorou pela perda do filho. Chorou por si mesma.
Chorou por todo o mundo doente.
Tracy continuou deitada no colchão fino, na escuridão fria. Foi
dominada por um ódio tão intenso que literalmente sacudiu-lhe o corpo.
Os pensamentos ardiam e flamejavam, até que a mente se esvaziou de toda
a emoção, a não ser uma única: vingança. Não era uma vingança dirigida
contra as suas companheiras de cela. As três eram tão vitimas quanto ela.
Nada disso. Ela queria vingança contra os homens que haviam destruído a
sua vida.
Joe Romano: "Sua velha me enganou. Não disse que tinha uma filha
tão gostosa."
Anthony Orsatti: "Joe Romano trabalha para um homem chamado
Anthony Orsatti, Orsatti manda em Nova Orleans."
Perry Pope: "Declarando-se culpada, você poupa ao Estado a despesa
de um julgamento..."
Juiz Henry Lawrence: "Pelos próximos quinze anos você estará
encarcerada na Penitenciária Meridional da Louisiana Para Mulheres."
Esses eram os seus inimigos. E havia ainda Charles, que não a
escutara: "Se precisava de dinheiro tão desesperadamente deveria ter
falado comigo... Obviamente, eu nunca a conheci de verdade... Terá de
fazer o que julgar melhor com seu filho..."
Ela faria com que todos pagassem. Até o último. Não tinha idéia
como. Mas sabia que o faria. Amanhã, pensou ela. Se houver amanhã.
Humberto Lopes
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